“A...ten...ção... ... ...meu povo”.
Cinco minutos depois: “Quero pedir...” Três minutos de pausa: “Quem pegou... ... ... minha carteira... ...” Dez minutos depois: “Favor devolver... ... pode ficar com o... ...”. Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. “Como disse, pode ficar... ...” Zzzzzzzzzzzzzzzz
Meia hora adiante: “Com o dinheiro. Quero tão somente... ... ...” Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. “Os cartões.”
Uma hora após: “Do banco, de crédito e...” Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. “Os documentos, carta de motorista... ... identidade...” Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. “Pode ficar com...” Zzzzzzzzzzzzzzzzzz. “Com a carteira.”
-- Senador, o sr. pode ser mais rápido? Faz uma hora que o sr. está no palco, de microfone na mão. E o show da Daniela Mercury está mais de uma hora atrasado.
-- Sim, meu filho. É que... ...
-- Sim, já sabemos, bateram sua carteira e levaram tudo. Ok. Mas o show tem de continuar
-- Tá... tá certo. É que... quem sabe... se eu pedir com jeitinho... eles devolvem
-- Ok, senador, não dá mais. Entrega o microfone, por favor
-- É rapidinho, prometo.
“Gente, quero pedir...”
-- Vai logo, Suplicy, Deixa a Daniela entrar – grita a plateia, entre irritada e sonolenta. Pior, quase ninguém sabia exatamente o que aquele senhor fazia há mais de uma hora sobre o palco.
-- Meu Deus, se ele começar a falar do Renda Mínima, estamos ferrados – comenta um espectador, que cruza os dedos.
Temendo que o show da Virada atrasasse mais ainda, o pessoal de apoio da cantora começa a gritar: “Devolve, devolve, devolve”, no que prontamente foram seguidos pelas centenas de pessoas que estavam ali, já mofando, com teias de aranhas cobrindo os cabelos, pés transformados em raízes rompendo o asfalto, colunas arqueadas pela ação do tempo.
O recado do senador foi tão demorado, lento, entrecortado por palavras soltas que Daniela Mercury já pôs fim a seu casamento com a jornalista e assumiu a poligamia, oficializando ali mesmo seu relacionamento com oito homens, sete mulheres, dois par de vasos e com o espelho da bruxa má de Branca de Neves.
O senador demorou tanto que os paulistanos que se dirigiram para a Virada Cultural voltaram para casa de pá virada. Pobre do jornalista que se aproximou dele para perguntar o que tinha, afinal, na carteira furtada. O rapaz foi demitido pois não voltou à redação até agora.
Sim, o senador conseguiu recuperar os documentos e seus cartões. O ladrão também estava na plateia irada e ficou extremamente preocupado quando o político disse, ao microfone, que gostaria de conhecer o gatuno e bater um papinho com ele. Prontamente, o larapio jogou a carteira num canto qualquer e deu pinote dali. Deve estar correndo até agora.
Não que o senador seja um sujeito chato. Ele até que é simpático atencioso (atencioso demais) e popular. Desde que não fale. Certa vez, em viagem até Brasília, um passageiro teve o desprazer de falar em alto e bom tom que o senador estava na aeronave. O infeliz pediu uma salva de palmas e algumas palavrinhas. Bem, o senador começou a falar do Renda Mínima, o avião pousou, as pessoas desceram e ele continuava ali falando. E ele estava apenas na introdução de seu programa.
Bem, voltando ao Virada Cultural, depois de dezoito horas de falatório do senador no palco, Daniela Mercury entrou, mas já era segunda-feira e o povo tinha ido trabalhar. O larápio, temendo ser localizado pelo senador, se entregou à polícia e o jornalista, pobre jornalista, apesar do emprego perdido, acredita ter um bom material para uma reportagem, assim que degravar aos 160 fitas utilizadas em seu mini-gravador no ‘papinho’ com o senador.