Em que momento perdemos a capacidade de nos mobilizar ante acontecimentos que ferem nossa dignidade? Hoje somos um povo sem mobilização, conformado, descrente de sua força, indiferente, maltratado e submisso. A democracia conquistada a duras penas, que nos custou mortes e torturas nos porões da ditadura, zomba de nossa fragilidade e tripudia em cima de nossa fraqueza.
Os escândalos pipocam todos os dias. A criminalidade dita as regras da sociedade. Os dominantes transitam impunemente, protegidos pela falta de memória do povo, pela lerdeza da Justiça, pela precariedade ativa de entidades constituídas para nos defender e fazer valer nosso direito de legítimos donos deste país.
Mal saímos de uma eleição e nos deparamos com eleitos vangloriando-se em fotos e palavras por estarem do lado de A ou de B. Quando nas urnas, não cumprimos nosso dever cívico para votar em oposição ou situação, mas em quem nos convenceu com seu discurso de bem nos servir e representar. Só que isso é prontamente deixado de lado quando o cenário se apresenta em forma de cargos e benefícios, com a desculpa de que se é forçado a tomar tal posição por pressão do partido. Mais uma vez: não votamos em partido, embora o sistema aqui seja partidário. Votamos em pessoas, que deveriam, acima de tudo, independentemente de quem governa ou é oposição, manter-se fiel a quem o elegeu e, sempre (ressalto, sempre), consultá-lo ao tomar uma posição, seja em que projeto for.
Quem são os nossos maiores representantes no contexto político de uma democracia? Os legisladores, que não deveriam, no entanto, se auto intitularem oposição ou situação de um governo antes mesmo de a gestão iniciar. Onde estão nossos legisladores estaduais que permitem, a contragosto do povo, que um vice-governador, eleito em chapa vencedora, aceite e ocupe um ministério? Se, como todos dizem que um vice não tem peso algum num governo, que mude o sistema de eleição que obriga a composição de dupla para o cargo máximo. Se for importante no organograma governamental, então, que seja impedido por lei que ocupe outras funções públicas em esferas superiores.
Hoje, temos um vice-governador com um pé em cada canoa e o povo não está nem ai. E nossos legisladores também parecem pouco se incomodar com o absurdo da situação. Assim sendo, por que votar num cabeça de chapa para eleger seu vice que pode pular do barco ao primeiro sinal de maior projeção na carreira política?
O mesmo ocorre com vereadores que, de tempos em tempos, para ganhar um espaço a mais na mídia anunciam migração para esse ou aquele grupo político. Embora a regra seja essa, brasileiro não vota em grupo, sigla, legenda, mas em pessoas. E eleitores deveriam se sentir enojados quando seus votos são trocados por cargos. Isso sem falar no nepotismo cruzado, que coloca nos Executivos e Legislativos pessoas (nem todas) incapacitadas para o desempenho da função, mas... é parente desse e daquele e, sabe como é, durante a campanha foi firmado esse compromisso. Existe até o nepotismo de negócios, com amigas íntimas de empresários lotadas em altos cargos.
Hoje, anestesiados, assistimos ao elevado número de cargos que Fulano ou Beltrano recebem para votar a favor do governo. Ou alguém já viu alguma manifestação na porta do Legislativo ou do Executivo cobrando explicações ou repúdio à postura de seu político?
Nossa submissão vai além dos braços cruzados ante o que ocorre com nossa política, seja ela municipal, estadual ou federal. Vemos a verdade maquiada no noticiário porque não interessa desnudá-la em razão de interesses comerciais. Ouvimos e lemos promessas vazias que jamais irão sair do papel, mas que são divulgadas amplamente e na forma mais pirotécnica possível para ludibriar o ouvinte e o leitor. Vemos anúncios de grandes investimentos e avanços sem a menor cobrança do por que não feito no passado quando também se tinha o poder. Vemos classe de trabalhadores com sobrecarga horária e salário vergonhoso, sem que seus sindicatos se mexam para lutar por eles sem tramoia a portas fechadas. Funcionalismo relegado a segundo plano ante a chegada de apadrinhados com ganhos triplos acima do concursado. Professores, policiais, médicos, enfermeiros obrigados a exercerem dupla e as vezes tripla jornada para garantir seus sustentos. E nós vemos tudo isso sem se mexer.
Temos uma situação calamitosa na Segurança Pública, o sucateamento da Saúde pública, o superfaturamento em obras para abrigar as futuras grandes competições, o perdão da dívida de países africanos enquanto ainda existem milhares de brasileiros em situação de miséria. Temos políticos condenados agindo naturalmente no meio. Ministros destituídos atuando como lobistas e conselheiros. Agressores de mulheres sendo recebidos como autoridades. Dirigente de passado negro comandando importantes entidades. E péssimos administradores se perpetuando no poder, pulando de cidade em cidade.
Por que perdemos o nosso poder de mobilização e de contestação? Onde estão aqueles brasileiros que saíam às ruas para denunciar a corrupção, para exigir Diretas Já, para denunciar os carrascos do DOI-CODI e as perseguições políticas, para dar um basta no Caçador de Marajás, para exigir igualdades sociais e cívicas para gays e lésbicas, para cobrar melhorias salariais, maior respeito patronal, maior empenho pelos menores abandonados e pelos filhos desaparecidos misteriosamente? Perdemos o poder de cobrar informações verdadeiras, doa a quem doer.
Esses brasileiros heroicos, que eram estudantes, profissionais liberais, jornalistas, sindicalistas, idealistas, nacionalistas hoje estão velhos, cansados, com marcas no corpo da luta pela democracia plena e transparente em todos os sentidos, e desiludidos porque as gerações posteriores a eles mal leem, ouvem ou opinam, a não ser que seja sobre a venda de Neymar, o roubo no apito de Amarilla e quem vencerá a Copa das Confederações. Perdemos o nosso poder de reclamar. Perdemos nosso poder de contestação para o Facebook. Perdemos nossa indignação para o Twitter. Perdemos o nosso poder de povo!